Se não tivesse morrido, Demóstenes cassaria o mandato do colega ex-Demóstenes sem hesitar .

Ano: 2007. Dia: 5 de dezembro. Local: plenário do Senado. A cuia de concreto projetada por Oscar Niemeyer fervilhava. Do lado de dentro, uma guilhotina. Sob a lâmina, pela segunda vez, o pescoço de Renan Calheiros. Os senadores revezavam-se na tribuna. Entre todas as vozes, a de Demóstenes Torres foi a que soou mais draconiana. “Vou votar pela perda de mandato”, eis a última frase.
Ano: 2012. Dia: 11 de julho. Local: o mesmo plenário do Senado. A cuia emborcada para baixo volta a ferver. De novo, um cadafalso. Ao longo do dia, os oradores se alternarão no púlpito. Dessa vez, não se ouvirá a voz inapelável de Demóstenes. Irá ao microfone um impensável ex-Demóstenes. Com a cabeça a prêmio, pronunciará o mais constrangedor discurso do dia. Rogará aos colegas que lhe salvem o mandato.
Submetido aos rigores do Demóstenes de 2007, o ex-Demóstenes de 2012 é um personagem indefeso. Na quinta-feira (5) da semana passada, a caminho do patíbulo, o sósia de Demóstenes discursou para um plenário ermo. Distribuiu invectivas contra o colega Humberto Costa, relator da peça que o acusa de ter maculado o decoro parlamentar.
O ex-Demóstenes abriu aspas para Humberto: “A apreciação realizada pelo Conselho de Ética não se confunde com os julgamentos do Poder Judiciário, que são julgamentos presos a rigorosos formalismos procedimentais, inclusive obrigados a buscar provas materiais irrefutáveis. Tal não se aplica ao processo disciplinar de falta de decoro parlamentar.”
Na pele de neo-Renan, o ex-Demóstenes indignou-se: “Isso está lá desse jeito, anunciando que um senador pode perder o mandato ao arrepio do procedimento formal e independentemente de se buscar prova.” Queixou-se: “[…] A representação, que deveria ser um documento à altura do mandato que ela quer cassar, foi transformada apenas numa folha de papel com ‘fatos deduzíveis’.”
Por uma dessas ironias que só a história, seletiva Senhora, sabe como levar ao corredor frio da posteridade, o ex-Demóstenes soou como o seu alvo de quatro anos e sete meses atrás. Também Renan, no julgamento de 2007, investira contra o relatório do senador Jefferson Peres, o relator da época. Reclamara de um texto que encomendava o seu escalpo invocando os “indícios de culpa.”
Implacável, Demóstenes dera de ombros para os procedimentos formais que poderiam produzir as provas: “Não me venham com a história de que meros indícios ou de que apenas indícios não são suficientes para ensejar uma condenação. São sim! O Código de Processo Penal tem um capítulo – “Dos Indícios” –, com um artigo, que dispõe claramente a respeito do tema. E os indícios levantados pelo senador Jefferson Péres são mais que suficientes para provar que o senador Renan Calheiros quebrou o decoro parlamentar.”
Em memorial distribuído na véspera do julgamento desta quarta, os advogados do ex-Demóstenes anotaram que “pesa” sobre os ombros dos juízes do Senado “uma dura cobrança de uma sociedade que está absolutamente vendada pelos mesmos interesses e atitudes” que “sangram” o acusado. A defesa conclamou os algozes a dar as costas para a imprensa e a opinião pública. Rogou para que resistam “a essa cobrança toda, a essa desmedida e criminosa pressão que não cessa…”
Tomado pelas palavras de 2007, Demóstenes daria uma banana para os defensores do ex-Demóstenes. Vale a pena ouvir o verdugo de Renam: “Nós, senadores, temos de salvar o nosso mandato. Temos de melhorar a imagem do Parlamento. Temos de votar de acordo com as nossas consciências. Temos de ser homens de bem. Temos de pensar que aí fora existe toda uma sociedade à espera do que vai acontecer. Esse resultado aqui não afeta só o nosso dia-a-dia, afeta a história de cada um de nós.”
Em discurso de seis dias atrás, um ex-Demóstenes sem história incomodara-se com uma frase extraída do relatório de Humberto Costa, o seu Jefferson Peres. Reproduziu-a: “O que está em debate não é a imagem do parlamentar, individualmente considerada, mas a do Parlamento.” Depois, interpretou-a:
“Significa que, se o meu pescoço não servir de abrigo à espada da mídia, ela vai se voltar contra esta Casa. Para efeito de comparação, seria certo a polícia tirar um suspeito de dentro da delegacia e entregar para a multidão que grita pelo linchamento. Não importa se a vítima é culpada ou inocente, se seria ou não absolvida pela Justiça. Se depois for descoberto que ela estava correta, será tarde, pois a sede de sangue tem de abastecer a enxurrada.”
O Demóstenes de 2007 preferia associar-se à “espada da mídia” para evitar que a lâmina se voltasse contra “esta Casa”. Emparedava os colegas, crivando-os de interrogações: “Qual é o Senado que nós queremos, senhoras e senhores senadores? É o Senado de Nabuco de Araújo? É o Senado de Rui? O Senado de Tancredo? O Senado de Juscelino? De Afonso Arinos? Ou queremos o Senado da patranha, o Senado da vergonha. […] A opinião pública vai nos cobrar se daqui sair mais uma decisão injusta, se daqui não apontarmos nós o caminho para a redenção do Senado.”
No miolo do seu memorial, como que preocupados com a possibilidade de a língua ferina de Demóstenes influir no julgamento, os advogados do ex-Demóstenes anotaram: “A defesa bem sabe que talvez o senador esteja aqui sendo julgado também, e sobretudo, por ser rigoroso, por ter sido agressivo nas palavras, por ter sido duro nas cobranças cotidianas. Mas se estes atos do passado o afastam dos seus pares, por eventual falta de cordialidade, certamente não representam potencial para justificar sua cassação.”
Vacinado contra apelos emocionais, Demóstenes faria ouvidos moucos para a equipe de defesa. Na célebre sessão de 2007, o antecessor do ex-Demóstenes comparara o acusado de então com o colega que presidia o julgamento na época e consigo mesmo:
“O senador Renan Calheiros é muito mais simpático do que o senador Tião Viana, muito mais simpático do que eu. Todavia, infelizmente, o concurso não é de miss, o concurso não é de mister, não conta simpatia neste caso. Conta, sim, a atitude que um homem tem à frente da Casa, no comando da Casa, ou sentado aqui, como senador da República.”
Para o Demóstenes de outrora o apelo à “cordialidade” insuado no texto dos advogados do ex-Demóstenes de agora era matéria prima negligenciável: “Os Senadores não devem votar só com seu coração, por maior que seja o sentimento de amizade pelo senador Renan Calheiros, por maior que seja a simpatia que ele inspirou quando presidente, e foi um presidente que atendeu a todos. Ele quebrou o decoro parlamentar. Essa é a situação que tem de ser considerada.”
Hoje, o ex-Demóstenes e sua defesa agarram-se ao voto secreto na expectativa de que do escurinho brote a surpresa de uma absolvição. Ontem, Demóstenes criticava o “papel feio que faz um senador que vem aqui, discursa de uma forma, vota de um jeito e sai dizendo que votou de outro.”
Indavava: “O que há por trás disso?” Açulava: “Assumam as posições!” Inquiria: “Que mal há nisso?” E lecionava: “É melhor o senador Renan Calheiros saber identificar quem foi que votou contra ele ou quem votou a favor dele do que o ato de dissimulação. Isto é o pior que pode haver para o Parlamento do Brasil, é o pior que pode haver para a configuração de um Senado altaneiro.”
Um momento crucial das biografias é o encontro do homem com seu erro. Demóstenes avistou-se com o erro no instante em que aproximou sua biografia à folha corrida do contraventor Carlinhos Cachoeira. Se a atuação de Demóstenes no Senado ensinou alguma coisa, é a não esperar qualquer tipo de intenção altruísta de personagens como Cachoeira. Quando se achegam a pessoas influentes, não buscam amizade, mas o intercâmbio de favores que lhes facilitem a sobrevivência.
Ao misturar-se com Cachoeira, Demóstenes tropeçou no erro. Sendo quem era, deveria ter olhado para o erro e proferido a sentença: “Ali está o erro”. Preferiu passar adiante, sem desconfiar de que o erro era o erro. Resultado: mergulhou de cabeça nas conversas vadias do Nextel. Encharcado, tornou-se o irreconhecível e indefensável ex-Demóstenes dos dias que correm.
Se não tivesse morrido, Demóstenes cassaria o mandato do colega ex-Demóstenes sem titubeios. Repetiria da tribuna, neste 11 de julho de 2012, a performance daquele 5 de dezembro de 2007. A plenos pulmões, voltaria a indagar:
“Qual é o Senado que nós queremos, senhoras e senhores senadores? É o Senado de Nabuco de Araújo? É o Senado de Rui? O Senado de Tancredo? O Senado de Juscelino? De Afonso Arinos? Ou queremos o Senado da patranha, o Senado da vergonha? Queremos o Senado do Demóstenes ou o Senado do ex-Demóstenes?” Em 2007, a despeito da verve de Demóstenes, os senadores optaram pelo Senado de Renan. Em 2012…

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